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MATRAGA E O VELHO BARREIRO

Conto por, Gustavo Rubim, o Matraga.

I

Nem me lembro bem quando, nem como as crianças adoçaram meu coração para modo de adotar aquela coisinha magricela e cheia de pêlo. De todo não era vira-lata. Chegou em más condições, descuidado, feio. Ainda assim tinha jeito de cão raçudo, orelhas caídas, de americano, patas grandes, de fila, um pêlo amarelo igual leite com rapadura.


Eu resisti, sempre tive coração duro pra bicho. Dió disse que bicho sempre faz bem para casa, traz amor e além disso ia fazer bem para as crianças. Com mil e uma condições aceitei. Cada menino ficaria responsável por uma tarefa, dar alimento, limpar cocô, dar banho, as obrigações básicas que exigem ter um animal.


II

Já de início não permitir bicho dentro de casa, lugar de bicho é no quintal. Escolheram o nome Barreiro para me agradar, mo-de me afeiçoar com a criatura, Velho Barreiro é pinga que me agrada o paladar e que costumo beber. Disso tiraram o “Velho” e deixaram “Barreiro” e quando fosse velho… acrescentariam o adjetivo por conveniência. E cachorro vive pouco, 14 pra 15 anos, por mo-de amar demais, quem ama demais não tem coração para viver tanto. Isso é teoria minha, homem rudo como eu não tem certeza das coisas, só hipóteses.


III

O bicho tinha chamego por mim, não sei se por eu rejeitá-lo e por o amor muitas vezes nascer dessas circunstâncias de rejeição. Fato é que aquela coisinha pequena vivia puxando a barra de minha calça e quando chegava do trabalho, sujo de reboco de parede, se metia dentro de minhas botinas. Observa aquela criatura, feliz por nada num fim de tarde ou começo de noite, hora mais triste do dia, se divertir com as coisas mais insignificantes da vida.


Era manhoso e insistia em meter-se no meu colo. Agachado na porta da cozinha, deixava-me cair a bunda no tapete e segurava aquela criatura como uma criança. Puxava suas orelhas compridas, enquanto lambia minhas mãos calejadas, dava mordidas com força moderada e eu prendia o focinho para retê-lo. Esses carinhos pequenos me fizeram amar o bicho e dar-lhe privilégios, como dormir dentro de casa.


IV

Crescia rapidamente, cada vez mais inteligente, nos divertia com suas brincadeiras. Sentávamos no sofá da sala, como na cadeira de um gran-teatro, para vê-lo fazer malabarismos com uma pelota de tricô colorida, carinhosamente feita por Dió, que mais tarde queria lhe tricota uma roupinha. Eu por ignorância minha, num sei, não deixei. Pra mim, bicho é bicho, nu, sem roupa, gente também era assim. Já ouvi o pastor Jeremias falar assim, até que Eva comeu da maçã e lascou-se…, fruta de que carrego receio até hoje, sempre preferi banana ou laranja. Imagine como o pobre ia se sentir dentro daquela costura, roçando em seu pêlo curto.


Passei a lhe comentar sobre as coisas do trabalho e da vida. Para minha surpresa, Barreiro tomava parte e reagia a elas, chegava a me repreender às vezes. Tínhamos longas conversas noturnas e Barreiro podia me dizer qualquer coisa com seus olhos grandes e tristes. Sim, aquele bicho tinha uma melancolia como a minha, pensava e refletia como gente. “Nego Velho, por que essa vida vivida, de viver e nada mais?”, aquele olhar curioso me respondia, “Ora, Matraga, de novo com essas conversas tortas, a vida é isso… desajeitada e atropela a gente”, masssssnummmmm-é.


V

Velho Barreiro, me permitia conversas mais profundas que os próprios humanos, e, com o tempo, elas tornavam-se cada vez mais reflexivas, atingindo até a metafísica. Nesses diálogos passamos a desenvolver um idioma para a comunicação cão-humano. Aproveitava da inteligência aprimorada daquele animal, os diálogos serviam para aperfeiçoá-la, era uma mistura de português com a variação do latido canino, primeiro definimos o pronome “eu”, que em novo idioma seria “au” e depois o verbo “ser”, que seria “siu”. Acreditávamos que definir o “eu” e o “ser” era a base para o princípio de qualquer idioma, já que toda filosofia se derivava disso, ainda que o francês não possua o verbo “ser”, mas certamente os franceses iriam nos perdoar.


Me dediquei a escritura de um dicionário para a nova língua, sob o olhar de preocupação de Dió e das crianças. Numa despensa nos fundos, me tranquei com Barreiro, trabalhávamos toda noite. Já velho, com o focinho esbranquiçado, tivemos que acelerar o trabalho para encerrar a obra.


Dió insistia em me levar a um psiquiatra, um psicólogo talvez, neguei absolutamente, disse que esses profissionais eram frutos da racionalidade e que a racionalidade nunca me interessou, se eu fora lúcido já tinha passado uma corda no pescoço e saltado da mangueira no quintal, como uma manga madura que cai e se esborracha no chão. Só o Velho Barreiro era capaz de me compreender.


VI

Dizia para Barreiro das vantagens de ser cachorro e do montão de problemas que isso lhe prevenia, que quisera eu ser cachorro um dia, se tiver segunda vida, o que os espíritas chamam de reencarnação, humano não queria, só voltava cachorro. Caminharia tranquilo pela manhã, passaria as tardes debaixo de uma árvore e à noite faria guarda para retribuir os cuidados do dono.


“Ora, Matraga, pare de por minhocas nessa cachola, ser homem é o que tem de melhor, ainda que essa condição lhe traga dor e sofrimento. Ficar preso na cabeça de cachorro, que só tem função de amar, é terrível. O homem tem opção de não amar se quiser, o cão não, está condenado ao amor desde o nascimento”, Barreiro me dizia essas filosofias com a uma pata sobre a outra, enquanto contemplava os ruídos da noite, “ouça Matraga, quem tem ouvido é para que ouça, escute o sofrimento dessa gente, às crianças que choram, as brigas matrimoniais, as conversas de calçada, eu trocaria tudo isso por esse meu corpo de cachorro”, era sabido o bicho, era sabido. Chegava tão cansado do serviço, que nem dava conta dessas coisas, mas Barreiro, dava início de noite, ia para beira do portão e ficava atento, de orelha em pé.


VII

Barreiro ficava mais inteligente com o acúmulos dos anos e transcendia suas reflexões a todos os campos, passava da filosofia à psicologia, da psicologia à física, da física à matemática. E eu aproveitava para beber de seu conhecimento canino e universal. Tinha menos conhecimento que um cachorro, sempre fui ignorante e quando passei a aprender queria por pra fora todas essas coisas.


Dió não dava ouvidos, os amigos no bar gozavam perguntando de onde eu tirava aquelas coisas, que para eles a vida era como um gole de cachaça, coisa que é para ser apreciada.


Já não partilhava desses pensamentos. Cheguei a quase restringi minha convivência ao Velho Barreiro, que perecia. Intensificava nossas relações, queria eu saber de todas as coisas, não me interessava a ignorância, pelo contrário, tinha vergonha dela.


Meu carinho por Barreiro passou a ser transcendental, já me envergonhava acariciá-lo o pêlo ou fazer idiotices que a gente faz pra cachorro. Vez ou outra ele se achegava para perto de mim e deitava de banda, eu resistia, mas puxava suas orelhas como quando filhote. Nisso, homem e cachorro são iguais, a necessidade do toque mais que a palavra. Nisso iam os dias com Barrerito.

VIII

Foi numa quarta-feira comum que perdi meu amigo. Cheguei do trabalho e ele não estava, caminhei pelo quintal a gritar seu nome, “Barreiro, Barreiro, Barreiro”. Nos últimos dias já quase abandorara seus passeios. Desde que sofreu com uma bicheira em uma das patas traseiras e passou a andar com ela para o ar. Curou-se, mas por medo ou mania, continuou a andar com três patas, saltando meio desajeitado, se utilizando da quarta apenas em emergências para correr ou fugir de pedras jogadas por crianças.


Nesse dia, justamente nesse, boca de noite, não apareceu. Ninguém iria roubar um cachorro velho. Nem a Dió nem as crianças tinham o amor inicial pelo bicho.


Deu meia-noite e sai para buscá-lo pela rua. Percorri toda a Otávio Pinheiro, de agasalho e mãos nos bolsos, era junho, fazia frio em Brasilândia. Gritava o nome do velho amigo a cada quebra-mola. Até que encontrei o corpo do meu amigo estendido na MG-181, na altura do posto Cerradão, iluminado por um poste que acendia e apagava no intervalo de minutos, ora jogando sua luz amarela de mercúrio sobre o cão, ora deixando-o sob a escuridão noturna. Não contive as lágrimas naquela situação, tive eu de recolher seu corpo médio em um saco de lixo, logo Barreiro, o mais inteligente dos cães, merecedor de todas as honrarias, aquele que amei sinceramente.


IX

Voltei para casa revestido por uma tristeza profunda, nem eu pensava que conservava tanto afeto por aquele animal. O enterrei em cova rasa, mas com honras, não necessitei rezar, pois quem precisa de orações são os humanos, que são a maldade.


Agarrei as centenas de páginas escritas do dicionário, quase terminado, faltando apenas palavras desimportantes como: importante, resiliência, mensagem, empreendedorismo, humano e tudo que deriva de “auto”; autoajuda, autoresponsabilidade [...]. E queimei, o fogo brilhava como os olhos do Velho Barreiro. Para comunicar-se com os cães não era necessário nenhum manual, pois a linguagem dos cães é a linguagem do amor e quem é capaz de amar os entenderão.


FIM



Autor: Gustavo Rubim.


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